O futebol brasileiro vive um paradoxo: dentro de campo, o talento e a emoção seguem inabaláveis; fora dele, a realidade financeira de muitos clubes é preocupante. O relatório da Convocados Gestora de Ativos de Futebol, Outfield Inc e Galapagos Capital revela que a sustentabilidade financeira ainda é um desafio central – e que a implantação de um Fair Play Financeiro real pode ser a chave para garantir a sobrevivência dos clubes a longo prazo.
Modelo SAF no futebol ainda não garante sucesso, diz relatório
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O tamanho da dívida no futebol brasileiro
Os números são alarmantes. Em 2024, o endividamento total dos clubes da Série A atingiu a marca de R$ 14,6 bilhões. Esse valor, que representa quase 1,5 vez a receita total dos clubes, mostra como as dívidas continuam a comprometer qualquer planejamento sustentável.
- Clube mais endividado: Atlético-MG, com dívidas que comprometem sua capacidade de investimento.
- Outros clubes em situação crítica: Corinthians e São Paulo, que mesmo com receitas expressivas, sofrem para equilibrar o passivo.
Essa realidade de dívidas altíssimas e descontrole financeiro faz com que muitos clubes operem no limite, contando com receitas de transferências ou empréstimos para “tapar buracos” de curto prazo.
Os riscos do modelo atual
O relatório destaca que o modelo atual – baseado em receitas variáveis (transferências, premiações e patrocínios de casas de apostas) – é frágil. A falta de receitas recorrentes fortes e a má gestão do fluxo de caixa transformam a dívida em um fardo quase impossível de carregar.
Consequências dessa situação:
- Juros altos e compromissos longos: clubes acabam renegociando dívidas antigas e criando novas dívidas ainda maiores.
- Falta de investimento em base e estrutura: recursos que poderiam ser usados para formar atletas e modernizar centros de treinamento acabam sendo direcionados para pagar dívidas.
- Desempenho esportivo comprometido: dívidas elevadas limitam o poder de investimento em contratações e manutenção de elencos.
A urgência de um Fair Play Financeiro real
Diante desse cenário, o relatório reforça a necessidade de implementar um Fair Play Financeiro efetivo no Brasil, inspirado em modelos já consolidados na Europa. Esse conjunto de regras tem como objetivo evitar que os clubes gastem mais do que arrecadam, estabelecendo limites claros para investimentos e endividamento.
No futebol europeu, por exemplo:
- A UEFA exige que clubes apresentem balanços equilibrados, com sanções rigorosas para quem descumpre.
- Clubes como o Manchester City e o Paris Saint-Germain enfrentaram investigações e multas por descumprir essas regras.
No Brasil, apesar de discussões sobre a criação de um Fair Play Financeiro, ainda não há uma regulamentação com força suficiente para mudar a cultura do gasto desmedido.
Como o Fair Play Financeiro pode ajudar
Se implementado de forma séria e fiscalizada, o Fair Play Financeiro brasileiro pode trazer benefícios como:
- Redução de dívidas: limitando o gasto acima das receitas e obrigando os clubes a gerirem melhor seus compromissos.
- Mais equilíbrio competitivo: evitando que clubes se “afundem” em dívidas na tentativa de disputar títulos.
- Crescimento sustentável: forçando investimentos em áreas que geram receita a longo prazo, como categorias de base e gestão comercial.
Clubes que mostram sinais de recuperação
O relatório aponta alguns clubes que, mesmo ainda com dívidas, têm buscado melhorar a sustentabilidade financeira:
- Palmeiras: mesmo sem a maior receita recorrente, tem superávit e bom controle de gastos, aproveitando bem as receitas de transferências.
- Flamengo: maior receita do Brasil (R$ 1,287 bilhão em 2024) e foco em diversificar as fontes de renda, com sócio-torcedor forte e crescimento comercial.
- Cruzeiro e Vasco (SAFs): as transformações em SAF abriram espaço para investimentos privados e maior controle financeiro.
Esses exemplos mostram que a disciplina e o planejamento são fundamentais para sair do ciclo de dívidas.
O papel das receitas recorrentes
Um ponto fundamental no relatório é que receitas recorrentes fortes (bilheteria, sócio-torcedor e comerciais) são a base para a sustentabilidade. Clubes como Fortaleza e Bahia já mostram como uma base sólida de sócios e público fiel ajuda a enfrentar as oscilações do mercado de transferências e das premiações.
Conclusão: mudança de cultura e profissionalização
O endividamento crônico do futebol brasileiro não é uma novidade, mas a diferença agora é que os riscos estão maiores: as dívidas crescem mais rápido do que as receitas. Para sobreviver, os clubes precisam de um choque de realidade: gastar apenas o que podem, investir em gestão profissional e adotar práticas de mercado que priorizem a sustentabilidade.
A criação de um Fair Play Financeiro real no Brasil é o primeiro passo para essa transformação. Não é apenas uma questão de sanção: é um pacto pelo futuro do futebol brasileiro, para que a paixão dentro de campo não seja sufocada pelas dívidas fora dele.